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    by Pedro Saborano






    HISTORIAS SEM DATA



    OBRAS DO AUTOR

    MEMORIAS POSTHUMAS DE BRAZ CUBAS 1 vol.
    HISTORIAS SEM DATA 1 vol.
    PAPEIS AVULSOS 1 vol.
    HELENA 1 vol.
    YAYÁ GARCIA 1 vol.
    A MÃO E A LUVA 1 vol.
    RESURREIÇÃO 1 vol.
    PHALENAS, poesias 1 vol.
    AMERICANAS, poesias 1 vol.
    CHRYSALIDAS, poesias 1 vol.
    CONTOS FLUMINENSES 1 vol.
    HISTORIAS DA MEIA NOITE 1 vol.
    TU SÓ, TU, PURO AMOR 1 vol.
    OS DEUSES DE CASACA, comedia 1 vol.
    DESENCANTOS 1 vol.
    THEATRO 1 vol.




    MACHADO DE ASSIS

    HISTORIAS SEM DATA

    A EGREJA DO DIABO--O LAPSO--ULTIMO CAPITULO
    CANTIGA DE ESPONSAES--UMA SENHORA
    SINGULAR OCCURRENCIA--FULANO--CAPITULO DOS CHAPÉOS
    GALERIA POSTHUMA
    CONTO ALEXANDRINO--PRIMAS DE SAPUCAIA
    ANECDOTA PECUNIARIA--A SEGUNDA VIDA--EX-CATHEDRA
    MANUSCRIPTO DE UM SACRISTÃO
    AS ACADEMIAS DE SIÃO
    NOITE DE ALMIRANTE--A SENHORA DO GALVÃO


    _RIO DE JANEIRO_
    B. L. GARNIER.--LIVREIRO-EDITOR
    _71--Rua do Ouvidor--77_

    1884.



    Typ. lith. a vapor, encadernação e livraria LOMBAERTS & C.




    INDICE

    PAGS.
    ADVERTENCIA vij
    A EGREJA DO DIABO 1
    O LAPSO 17
    ULTIMO CAPITULO 33
    CANTIGA DE ESPONSAES 49
    SINGULAR OCCURRENCIA 57
    GALERIA POSTHUMA 71
    CAPITULO DOS CHAPÉOS 87
    CONTO ALEXANDRINO 113
    PRIMAS DE SAPUCAIA! 131
    UMA SENHORA 147
    ANECDOTA PECUNIARIA 161
    FULANO 181
    A SEGUNDA VIDA 191
    NOITE DE ALMIRANTE 205
    MANUSCRIPTO DE UM SACRISTÃO 219
    EX CATHEDRA 235
    A SENHORA DO GALVÃO 251
    AS ACADEMIAS DE SIÃO 263


    ERRATA

    Escaparam alguns erros typographicos faceis de emendar; entre outros,
    estes: _coser-lhe_ por _coser_ (pag. 43); _estar-lhe a contar_ por
    _estar a contar-lhe_ (pag. 182); _deram a força_ por _lhe deram a força_
    (pag. 211); _evidente mais_ por _evidentemente mais_ (pag. 272), etc.




    ADVERTENCIA


    De todos os contos que aqui se acham ha dous que effectivamente não
    levam data expressa; os outros a tem, de maneira que este titulo
    _Historias sem data_ parecerá a alguns inintelligivel, ou vago.
    Suppondo, porém, que o meu fim é definir estas paginas como tratando, em
    substancia, de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo
    dia, penso que o titulo está explicado. E é o peor que lhe póde
    acontecer, pois o melhor dos titulos é ainda aquelle que não precisa de
    explicação.

    M. de A.




    A EGREJA DO DIABO


    CAPITULO I

    DE UMA IDÉA MIRIFICA

    Conta um velho manuscripto benedictino que o Diabo, em certo dia, teve a
    idéa de fundar uma egreja. Embora os seus lucros fossem continuos e
    grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde
    seculos, sem organisação, sem regras, sem canones, sem ritual, sem nada.
    Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e
    obsequios humanos. Nada fixo, nada regular. Porque não teria elle a sua
    egreja? Uma egreja do Diabo era o meio efficaz de combater as outras
    religiões, e destruil-as de uma vez.

    --Vá, pois, uma egreja, concluiu elle. Escriptura contra Escriptura,
    breviario contra breviario. Terei a minha missa, com vinho e pão á
    farta, as minhas predicas, bullas, novenas e todo o demais apparelho
    ecclesiastico. O meu credo será o nucleo universal dos espiritos, a
    minha egreja uma tenda de Abrahão. E depois, emquanto as outras
    religiões se combatem e se dividem, a minha egreja será unica; não
    acharei diante de mim, nem Mahomet, nem Luthero. Ha muitos modos de
    affirmar; ha só um de negar tudo.

    Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um
    gesto magnifico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus
    para communicar-lhe a idéa, e desafial-o; levantou os olhos, accesos de
    odio, asperos de vingança, e disse comsigo:--Vamos, é tempo. E rapido,
    batendo as azas, com tal estrondo que abalou todas as provincias do
    abysmo, arrancou da sombra para o infinito azul.


    CAPITULO II

    ENTRE DEUS E DIABO

    Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os seraphins que
    engrinaldavam o recem chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se
    estar á entrada com os olhos no Senhor.

    --Que me queres tu? perguntou este.

    --Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por
    todos os Faustos do seculo e dos seculos.

    --Explica-te.

    --Senhor, a explicação é facil; mas permitti que vos diga: recolhei
    primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor logar, mandai que as mais
    afinadas citharas e alaúdes o recebam com os mais divinos córos...

    --Sabes o que elle fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de
    doçura.

    --Não, mas provavelmente é dos ultimos que virão ter comvosco. Não tarda
    muito que o céu fique semelhante a uma casa vasia, por causa do preço,
    que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou
    fundar uma egreja. Estou cançado da minha desorganisação, do meu reinado
    casual e adventicio. É tempo de obter a victoria final e completa. E
    então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não accuseis de
    dissimulação... Boa idéa, não vos parece?

    --Vieste dizel-a, não legitimal-a, advertiu o Senhor.

    --Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor proprio gosta de ouvir o
    applauso dos mestres. Verdade é que n'este caso seria o applauso de um
    mestre vencido, e uma tal exigencia... Senhor, desço a terra; vou largar
    a minha pedra fundamental.

    --Vai.

    --Quereis que venha annunciar-vos o remate da obra?

    --Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cançado ha
    tanto da tua desorganisação, só agora pensaste em fundar uma egreja?

    Diabo sorriu com certo ar de escarneo e triumpho. Tinha alguma idéa
    cruel no espirito, algum reparo picante no alforge da memoria, qualquer
    cousa que, n'esse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao
    proprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

    --Só agora conclui uma observação, começada desde alguns seculos, e é
    que as virtudes, filhas do céu, são em grande numero comparaveis a
    rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu
    proponho-me a puxal-as por essa franja, e trazel-as todas para minha
    egreja; atraz d'ellas virão as de seda pura...

    --Velho rhetorico! murmurou o Senhor.

    --Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do
    mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do
    mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupillas centelham de
    curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do peccado. Vêde o
    ardor,--a indifferença, ao menos,--com que esse cavalheiro põe em
    lettras publicas os beneficios que liberalmente espalha,--ou sejam
    roupas ou botas, ou moedas, ou quaesquer d'essas materias necessarias á
    vida... Mas não quero parecer que me detenho em cousas miudas; não
    fallo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas
    procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma commenda...
    Vou a negocios mais altos...

    N'isto os seraphins agitaram as azas pesadas de fastio e somno. Miguel e
    Gabriel fitaram no Senhor um olhar de supplica. Deus interrompeu o
    Diabo.

    --Tu és vulgar, que é o peior que póde acontecer a um espirito da tua
    especie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e
    redito pelos moralistas do mundo. É assumpto gasto; e se não tens força,
    nem originalidade para renovar um assumpto gasto, melhor é que te cales
    e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os signaes
    vivos do tedio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes
    tu o que elle fez?

    --Já vos disse que não.

    --Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um
    naufragio, ia salvar-se n'uma taboa; mas viu um casal de noivos, na flor
    da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a taboa de salvação e
    mergulhou na eternidade. Nenhum publico: a agua e o céu por cima. Onde
    achas ahi a franja de algodão?

    --Senhor, eu sou, como sabeis, o espirito que nega.

    --Negas esta morte?

    --Nego tudo. A misanthropia póde tomar aspecto de caridade; deixar a
    vida aos outros, para um misanthropo, é realmente aborrecel-os...

    --Rhetorico e subtil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua egreja;
    chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os
    homens... Mas, vai! vai!

    Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impuzera-lhe
    silencio; os seraphins, a um signal divino, encheram o céu com as
    harmonias de seus canticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no
    ar; dobrou as azas, e, como um raio, caiu na terra.


    CAPITULO III

    A BOA NOVA AOS HOMENS

    Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar
    a cogula benedictina, como habito de boa fama, e entrou a espalhar uma
    doutrina nova e extraordinaria, com uma voz que reboava nas entranhas do
    seculo. Elle promettia aos seus discipulos e fieis as delicias da terra,
    todas as glorias, os deleites mais intimos.

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